domingo, 26 de março de 2017

Leitura dos fragmentos

O livro de Heráclito

O debate sem fim sobre o livro de Heráclito na verdade é fruto do modo como concebemos deveria ser um livro[1].
Em no terceiro livro de sua Retórica, Aristóteles dedica um certo espaço a mostrar Heráclito como anti-modelo de uma expressão 'clara', apropriada para os discursos[2]:
"De modo geral, o que é escrito deve ser fácil de ser lido e dito.  Pois é a mesma coisa. Isso não é faz pelo uso de muitas conjunções nem quando a pontuação é difícil, como nos {fragmentos} de Heráclito. De fato, pontuar os fragmentos de heráclito dá muito trabalho por que não é claro a qual das duas a palavra se vincula, se a que veio depois ou a que veio antes, como se pode perceber no próprio começo de sua obra. Afirma que "Apesar desse ‘logos’ existir sempre como ignorantes os homens se apresentam". Não é claro, pois,  a qual 'sempre'deve se vincular para que a pontuação seja realizada.
ὅλως δὲ δεῖ εὐανάγνωστον εἶναι τὸ γεγραμμένον καὶ εὔφραστον: ἔστιν δὲ τὸ αὐτό:
ὅπερ οἱ πολλοὶσύνδεσμοι οὐκ ἔχουσιν, οὐδ᾽ ἃ μὴ ῥᾴδιον διαστίξαι, ὥσπερ τὰ
 Ἡρακλείτου. τὰ γὰρ Ἡρακλείτου διαστίξαι ἔργον διὰ τὸ ἄδηλον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον,οἷον ἐν τῇ ἀρχῇ αὐτῇ τοῦ συγγράμματος: φησὶ γὰρ “τοῦ λόγου τοῦδ᾽ ἐόντος ἀιεὶ ἀξύνετοι ἄνθρωποι γίγνονται”: ἄδηλον γὰρ τὸ ἀεί, πρὸς ποτέρῳ δεῖδιαστίξαι."



Uma análise assim em detalhes da pontuação pressupõe um material registrado em livro, τὰ Ἡρακλείτου. Aristóteles é bem específico sobre isso,  ao mencionar que se refere ao começo da obra escrita de Heráclito, οἷον ἐν τῇ ἀρχῇ αὐτῇ τοῦ συγγράμματος. Para Aristóteles, o espaço textual proposto por Heráclito acarreta desvios em relação à distribuição das palavras em uma ordem causal, com a possibilidade de um termo se aplicar a mais de um termo, possuir uma ambivalência espacial e semântica. No exemplo citado, do fragmento 1 de Heráclito, temos:
“τοῦ λόγου τοῦδ᾽ ἐόντος ἀιεὶ ἀξύνετοι ἄνθρωποι γίγνονται”
                                 1ç       è2
1- Apesar desse ‘logos’ existir, sempre como ignorantes os homens se apresentam
2- Apesar desse ‘logos’ existir sempre, como ignorantes os homens se apresentam

Assim, o termo ἀιεὶ se refere tanto ao seu antecendente(ἐόντος), como ao seu consequente(ἀξύνετοι)  τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον, fazendo irromper na sucessão de vocábulos uma simultaneidade de relações, uma ordem reversa, a possibilidade de seguir adiante e voltar para trás:




Aristóteles considera a disposição mais flexível das palavras e seu efeito de desorientação um equívoco no uso da norma linguística, um 'solecismo'.  Na verdade, este trabalho no espaço textual é a obra mesma de Heráclito, τὰ Ἡρακλείτου. De fato, é claro que ἀεὶ  pode se referir a ambos os termos, antecedente e consequente. No lugar de uma só ordenação, o espaço textual é construído na emergência de diversas outras possibilidades.
Tomando apenas o fragmento do fragmento , que foi citado por Aristóteles, temos a amostra dessa operatividade escritural de Heráclito. Não por acaso,  ἀεὶ encontra-se no meio de dois conjuntos de elementos:

1
2
3
4
5
6
7
8
τοῦ
λόγου
τοῦδ᾽ 
ἐόντος
   ἀιεὶ 
ἀξύνετοι
ἄνθρωποι 
γίγνονται

Inicialmente, poderíamos dividir o texto em dois pares de igual número de palavras, formando um conjunto simétrico, que se duplica também no modo como cada metade organiza seus padrões sonoros:

Padrão 1
Padrão 2
τοῦ
   ιεὶ
λόγου
ξύνετοι
τοῦδ[3]
νθρωποι
ἐόντος
γίγνονται

Ambas as duas metades possuem uma sucessão de três palavras com um som comum (1= -ου;2=ἀ-) que se 'fecham' com um novo som[4]. Logo,  horizontalmente temos dois blocos simétricos justapostos; verticalmente temos duas listas simétricas correspondentes.
Embora, pelo som ἀιεὶ se ligue ao segundo bloco, por sua posição favorece ser, ao mesmo tempo, o primeiro vocábulo do segundo par e o último do primeiro par. Além disso, reforçando tal posição fronteiriça,  o sintagma ἐόντος ἀεὶ retoma a o epíteteto ou fórmula homérica que qualifica a imortalidade dos deuses -  αἰὲν ἐόντες - como no livro primeiro da Ilíada [5]:
"Se fizeram dele um guerreiro os deuses que existem para sempre
foi para isso, deixar que ele nos lançe insultos?
εἰ δέ μιν αἰχμητὴν ἔθεσαν θεοὶ αἰὲν ἐόντες
τοὔνεκά οἱ προθέουσιν ὀνείδεα μυθήσασθαι; "

Assim, Heráclito dialoga com a tradição épica, invertendo o termos da fórmula homérica na construção de uma disposição de palavras que, não mais no espaço iterativo da poesia épica, retoma alguns de seus procedimentos em uma nova orientação: aqui temos um jogo de convergências e divergências, a partir da proposição de uma simetria que é ao mesmo tempo redefinida.
 A fluidez na colocação do termo ἀιεὶ sobrepõe estruturas correspondentes e equivalentes, acarretando, a partir de seu ponto de contato, uma outra forma de sua apreensão:
1
2
3
4
5
τοῦ
λόγου
τοῦδ᾽ 
ἐόντος
  ἀιεὶ

5
6
7
8
   ἀιεὶ 
ἀξύνετοι
ἄνθρωποι 
γίγνονται

Este ponto em contato ou comum projeta outra imagem que a da linha para compreender o modo como o trecho do fragmento se organiza. A partir da simultaneidade, da co-presença de um elemento em duas sucessões simétricas textuais, temos tensões espalhadas na interação entre os grupos pareados e paralelos. Ainda mais no detalhe da letra, podemos perceber que no eixo vertical essa tensão se verifica no uso de uma mudança de padrão após uma sucessão de sons em eco e na quantificação silábica na qual a isomorfia dos conjuntos pareados é rompida, pois o conjunto 2 possui o quase o dobro de sílabas que o conjunto 1:
Grupo I = 1τοῦ 2λό- 3γου 4τοῦ5 δ᾽ 6ἐ όν- 7τος  =7 posições
Grupo II= 1ἀι-2εὶ 3ἀ-4ξύ-5νε-6τοι 7ἄν-8θρω-9ποι 10γί-11γνον-12ται = 12 posições

Tais tensões entre expectativa de simetria e sua rupura nos colocam diante da questões já vista das conexões entre elementos e entre padrões de organização dos elementos, com o 'fragmento musical' 10: trata-se das 'conexões, συλλάψιες'.  A sobreposição de nexos entre elementos e grupos registrada no ἀιεὶ assim como seu movimento palindromico -para frente e para trás[6] - apontam para uma modelação mais fluída, espiralada.
Tal modelação ratifica a semântica mesma da própria palavra ἀιεὶ: a experiência temporal ali registrada não se confina a um tempo abstrato, um tempo fora do tempo. A par dessa duração absoluta, temos a referência a acontecimentos que registram concretas aplicações:
1- Na Ilíada, Após Apolo jogar suas setas no acampamento aqueu, a mortandade se espraia. Piras com cadáveres são erguidas. E ardem continuadamente[7]:
"Continuadamente as piras repletas de cadáveres ardiam
αἰεί δὲ πυραὶ νεκύων καίοντο θαμειαί."
Aqui ἀιεὶ refere-se ao acúmulo sem interrupções de cadáveres nas piras, traduzindo a continuidade e amplitude do ataque de Apolo.
2- Após os ataques da flechas de Apolo, há uma assembléia entre os aqueus. Após a fala do profeta Calcas, Agamenon, como havia feito com Crises, se enfurece e rebate veementemente o profeta[8]:

"Advinho de desgraças[9]: nunca uma vez só me disse algo favorável
sempre as desgraças te agradam no peito profetizar
μάντι κακῶν οὐ πώ ποτέ μοι τὸ κρήγυον εἶπας:
αἰεί τοι τὰ κάκ' ἐστὶ φίλα φρεσὶ μαντεύεσθαι "

Agamenon usa o termo ἀιεὶ para indicar o comportamento recorrente de alguém que procura rebaixar. A oposição entre nunca (οὐ πώ ποτέ) e sempre (αἰεί) articula essa retórica.
Agamenon vai se valer mais à frente na assembléia dessa negação excluidora ao replicar o herói Aquiles[10]:
"Mais odioso você é pra mim de todos os reis criados pelos deuses:
sempre te agradam as disputas, as guerras, as lutas.
ἔχθιστος δέ μοί ἐσσι διοτρεφέων βασιλήων:
αἰεὶ γάρ τοι ἔρις τε φίλη πόλεμοί τε μάχαι τε:
"

Mesmo que, como vimos, ἀιεὶ se vincule a uma fórmula que qualifique os divinos, entre os bem-aventurados há um espelhamento na forma como um corportamento repetitivo é identificado. Na assembléia entre os imortais, debatem Hera e Zeus[11]:
"Em seguida de modo agressivo a Zeus Crônida {Hera}falou:
- Quem entre os deuses, espertalhão, outra vez tomou conselho contigo?
Sempre te agrada se manter afastado de mim,
coisas em segredo pensadas decidindo.
αὐτίκα κερτομίοισι ∆ία Κρονίωνα προσηύδα:

τίς δ᾽ αὖ τοι δολομῆτα θεῶν συμφράσσατο βουλάς;
αἰεὶ τοι φίλον ἐστὶν ἐμεῦ ἀπὸ νόσφιν ἐόντα
κρυπτάδια φρονέοντα δικαζέμεν"

Zeus mais à frente responde Hera[12]:
"Praga! Sempre a suspeitar, nada te escapa.
δαιμονίη αἰεὶ μὲν ὀΐεαι οὐδέ σε λήθω"

Desse modo, a partir dessa pequena amostra, vemos que a oposição sempre (todos os momentos)/ nunca (em nenhum momento) não se relaciona a um instante específico tanto do evento referido, quando ao do próprio enunciado[13].  Antes, temos um modo de marcar efeitos de ações contínuas, ou a continuidade mesma das ações.  Logo, 'sempre' é o que continuadamente acontece.
A explícita reação de Aristóteles à desconfortável mobilidade do vocáculo αἰεὶ corrobora a percepção de que a questão não é meramente linguística.

Com isso, na abertura de sua obra, Heráclito demonstra as habilidades de manipular a escolha e distribuição de palavras e seus elementos materiais no espaço textual de forma a não apenas escrever palavras, mas proporcionar um artefato constituído a partir de uma lógica de restrições, de decisões pré-composicionais[14].
αἰεὶ / αἰὼν - em outro fragmento tal destaque ao que continuamente acontece é  reatualizando em seu  aspecto lúdico, como na  proposta anti-homérica de Heráclito no fragmento 56:[15]:
O tempo da vida é uma criança brincando, movendo as peças no tabuleiro. Reinações da criança[16].
αἰὼν παῖς ἐστι παίζων, πεσσεύων· παιδὸς ἡ βασιληίη.



Aqui o termo αἰὼν aparece em uma posição também estratégica: é a primeira palavra, abrindo o fragmento[17]. O tempo da vida é definido por uma série de ações da criança em jogos, formando um conjunto de amplificações interligadas: A(αἰὼν)=( ἐστι) B1(παῖς επαίζων), B2(πεσσεύων) B3(παιδὸς ἡ βασιληίη).  A sucessão B1 a B3 mostra um movimento do jogos de tabuleiros para o comando da polis, integrando atividades diversas e opostas em relação aos papéis sociais, como vimos nos fragmentos 56, 78, e na anedota de Diógenes Laércio sobre Heráclito no tempo brincando com as crianças[18].  A imagem em movimento da criança movendo as peças no tabuleiro atravessa seu contexto de produção, perdurando em outros momentos da vida social, ampliando sua duração e efeitos.
Inicialmente esta expansão é efetivada por meio do acúmulo de blocos de palavras justapostas sem conexões. A sucessão dos blocos ou sintagmas projeta sua apreensão global: cinematicamente, temos uma sucessão a partir de uma base comum - a criança, παῖς - a qual vai se somando cada vez mais uma nova informação.



Entre B1 e B2 temos um padrão de continuidade: o verbo em B2 especifica a ação de brincar da criança em B1. Ao mesmo tempo, o sujeito de B1 está implícito em B2, como se vê pela desinência verbal. Assim, temos o encaixe entre B1 e B2, que mesmo se apresentando como formas diversas, são complementares:
SUJEITO
VERBO
παῖς
επαίζων
(παῖς)
πεσσεύων·
 O bloco B1 é extremamente preonástico, παῖς επαίζων, quase que dobrado sobre si mesmo, reforçando o fato que a criança joga sozinha, sem adversário um jogo que é marcado por uma disputa com outra pessoa, πεσσεύων[19].  Essa reflexividade, movimento para si frente ao outro, retoma o trabalho sobre si mesmo, referido no fragmento 101. A criança brinca sozinha um jogo de tabuleiro, πεσσεύων.
A sucessão de referências entre B1 e B2 forma a sequência medial do fragmento, seu núcleo. Sendo que o fragmento é construído em quatro blocos, temos assim a sua distribuição:


A centralidade da criança envolvida com sua brincadeira é reforçada pelas as margens ou extremos iniciais e finais que comprendem momentos da vida com maior experiência e extensão de tempo, configurando uma organização quiástica, ab:ba [20].
Esta centralidade da criança sozinha com o jogo possibilita o acesso a alguns aspectos da relação de Heráclito com seu livro. Como Aristóteles havia afirmado, o texto dos fragmentos é difícil leitura e compreensão pois se vale de palavras com ambivalência sintática, distribuídas no espaço textual de forma a manifestar uma dinâmica posicional, ao ocupar lugares contínuos e diversos. A convergência entre a espacialidade do texto e a do tabuleiro não é ocasional. A criança jogando seu jogo, o escritor envolvido com sua obra; a movimentação das peças no tabuleiro, o arranjo das palavras no texto.
No caso, o jogo é especificado no fragmento - πέσσοι -, como o fora na anedota- ἀστράγαλος.  O nome πέσσοι se refere ao tábuleiro de pedra no qual as peças são movimentadas[21].  O verbo em B2, πεσσεύων, significa 'mover as peças no tabuleiro do jogo'.
Temos então algums elementos fundamentais a efetivação deste jogo: jogadores tabuleiro, peças, regras, movimento das peças[22].  Mas que jogo é este que Heráclito tem em mente? O que o tabuleiro registra como trilhas e espaços a serem percorridos? Quais suas regras?[23]
 Revertendo, porém,  o outro lado da comparação, se não é claro como o jogo citado por Heráclito se efetiva, o jogo jogado com as palavras no fragmento 52 é bem compreensível[24].  A partir da divisão do espaço textual em quatro blocos, temos o detalhe da letra os complementares movimentos com os sons. O destacado bloco inicial de abertura com sua única palavra αἰὼν apresenta um material que será desdobrado nos blocos subsequentes, como se vê na tabela abaixo:



Esse jogo de ecos internos demonstra como a escolha das palavras e sua ordenação foram realizados na exploração de padrões sonoros, que vão sendo interrelacionados, formando a coesão do fragmento.
Na cabeça de cada bloco há uma linha de continuidade e transformação a partir da base παῖς:



Assim, a criança se metaformoseia no eixo do tempo enquanto brinca, ou o jogo dá existência ao tempo durante sua realização.  De qualquer forma a criança está duplamente associada à duração do tempo da vida e do jogo.
Por outro lado, a parte final do vocábulo αἰὼν, repercute sucessivamente até B2, formando outra linha, parela, que se interrompe com a configuração quase inteiramente nova do último bloco. Da primeira palavra parte vínculos aurais com as demais palavras, e as demais palavras redispõe a palavra inicial. Assim se forma uma rede de relações que dinamiza o fragmento em diversos modos de acompanhar aquilo que ali está registrado textualmente.
O último bloco, tanto finaliza o fragmento e as metamorfoses de παῖς. Ao mesmo tempo, B3 se vincula a A, ao propor um outro material sonoro, e encerra a sequência nuclear, em torno da figura do menino:




Um exame mais atento de B3, no diagrama abaixo, fundamenta seu hibridismo:


O bloco terminal do fragmento, relaciona-se com a sequência medial e com parte inicial do vocábulo do primeiro bloco (αἰ-ὼν), mas introduz uma diverso padrão, que se fecha sobre si mesmo:
1
2
3
4
5
ἡ
βα-
σι-
ληί-
η

O artigo no começo de B3.2 é duplicado na desinência final que fecha B3 e o inteiro fragmento.  A densidade de vogais longas (ἡ) em B3 replica a densidade de vogais longa (ὼ) nas primeiras posições do fragmento (A e B1).  Sendo assim, ao mesmo tempo essa coda em B3.2 apresenta um novo material e varia o padrão da abertura.  O tempo, o longo tempo de uma existência, αἰὼν, com seus começos e fins, é o de uma criança brincando, que se amplia até o mais alto posto da cidade, mas que não deixa de ser uma criança. Do fim, do extremos após tudo, volta-se para o início.

Começamos a entender o jogo da escritura de Heráclito. A simultaneidade de formas de distribuição dos vocábulos em blocos com heterogêneos modo de relacionamento e a manipulação de dinâmicas aurais múltiplas contribuem para materializar um texto atravessado por marcas e orientações diversas. Isso no exíguo espaço de poucas palavras. Assim, temos a desproporção entre a amplitude e simultaneidade de níveis organizacionais e interpretativos com a exiguidade do material.
Com isso, o foco desse textos, dos textos que integram o livro de Heráclito, residem justamente na aplicação do leitor em identificar, a partir do arranjo das palavras e efeitos sonoros, os processos utilizados na elaboração dos fragmentos.  Os textos chamam atenção para si mesmos, como a experiência do jogo que, segundo H.G.Gadamer "o sujeito genuíno do jogo não é a subjetividade daquilo que joga, mas o próprio jogo (GADAMER 1997:178)"[25].
A partir da compreensão da densidade organizacional e sonora do texto, é que o intérprete se capacita para produzir algumas afirmações.  A dificuldade ou a falta de clareza apontadas por Aristóteles ao fim tem sua positividade: o texto de cada fragmento, composto por poucas palavras, com um vocabulário acessível, não se deixa apreender imediatamente. É preciso uma outra forma de aproximação, que não siga o registro linear das palavras e sim a sua intricada rede de configurações. É a partir do tempo dedicado a esta leitura atenta, a este deciframento que algumas ideias são emitidas. 
O julgamento de Aristóteles sobre Heráclito na Retórica foi retomado por Demétrio de Faleros, com significativas modificações[26]:
"A clareza em diversos fatores. Primeiro nas palavras do vernáculo, depois no uso dos conectivos. O que é desprovido de conectivos {assíndeto} e completamente desarticulado é sempre sem clareza. Pois, por causa dessa frouxidão, o começo de cada membro {κώλου} fica imperceptível, como nos textos de Heráclito. Sua obscuridade advém dessa frouxidão frequente. O estilo desarticulado cabe mais nos debates, sendo chamado também de estilo teatral, pois a frouxidão dinamiza a cena. Por outro lado, o estilo escrito é melhor para a leitura.
τὸ δὲ σαφὲς ἐν πλείοσιν.{192}Πρῶτα μὲν ἐν τοῖς κυρίοις, ἔπειτα ἐν τοῖς 
συνδεδεμένοις. τὸ δὲ ἀσύνδετον καὶ διαλελυμένον ὅλον ἀσαφὲς πᾶν: ἄδηλος γὰρ  ἑκάστου κώλου ἀρχὴ διὰ τὴν λύσιν, ὥσπερ τὰ Ἡρακλείτου: 
καὶ γὰρ ταῦτα σκοτεινὰποιεῖ τὸ πλεῖστον  λύσις.{193}Ἐναγώνιος μὲν οὖν ἴσως
 μᾶλλον  διαλελυμένη λέξις,  δ̓ αὐτὴ καὶ ὑποκριτικὴ καλεῖται:κινεῖ γὰρ ὑπόκρισιν  λύσις. γραφικὴ δὲ λέξις  εὐανάγνωστος".


Como na Retórica, Demétrio se vale dos textos de Heráclito, τὰ Ἡρακλείτου, para exemplificar uma determinada abordagem linguística que se opõe à clareza[27]. Porém sua argumentação se baseia mais nas diferenças que em uma hierarquia de valores. Nesse sentido, o chamado estilo desarticulado,  διαλελυμένη λέξις, presente nos fragmentos encontra algumas características que o justificam.
Primeiro, a desarticulação se dá na omissão de conectivos, τὸ δὲ ἀσύνδετον ,  promovendo uma justaposição de elementos e síntese frasal, διαλελυμένον ὅλον . Esta generalização paratática dispõe os materiais em igual ordem de importância.
Em seguida, o efeito dessa organização heterodoxa é o da desorientação do intérprete, ἀσαφὲς πᾶν: não sabendo onde começa (e onde termina) as frases, ele possui diante de si blocos e elementos isolados. Saímos de um organização em 'unidades superiores' (frases, períodos) para uma reunião/amontoado de vocábulos não instrumentais que são lugares de trocas dentro das margens propostas pelo fragmento[28].
A correlação entre modo de organização textual e seu efeito no receptor que define o estilo articulado é posteriormente justificado ao se associar a situações nais quais o uso da palavra se faz em performances diante de um público. Assim, Demétrio vincula especificidades de um registro textual às particularidades envolvidas na prática forense e teatral, Ἐναγώνιος  ... ὑποκριτικὴ . 
Dessa maneira, Demétrio vincula performance e textualidade, propondo a correlação entre a maior fluidez na distribuição dos elementos e um evento que se efetiva diante de uma audiência. Mais à frente em sua análise, Demétrio apresenta dois fatores extratextuais que determinam o estilo desarticulado em interações performativamente orientadas:
1- marcação emocional Diante da imediaticidade da cena, o ator dá espaço para a eclosão dos afetos e, com isso, sua atividade verbal procura traduzir aquilo que é indizível, abrindo possibilidades para expressões outras que a palavra.  Assim, "o que é desprovido de emoção não é teatral, πάνυ δὲ τὸ ἀπαθὲς ἀνυπόκριτον"[29]. A desarticulação entre os elementos, a omissões de conexões lógicas, tudo isso é uma aproximação textualizada de um evento multidimensional, a materialidade do corpo em estados sensibilizados.
2- ações físicas. No tempo e espaço da performance, há uma série de movimentos, deslocamentos, ações. O agente cênico contracena com outros agentes, com os objetos de cena, com a audiência. Tal sequenciamento dos atos acarreta uma cinemática na linguagem, um relacionamento entre o que se escreve e a audiovisualidade dos eventos. Assim, no texto temos os "todos os demais detalhes que configuram o fisicidade da arte do ator καὶ λοιπὴ πᾶσα διαμόρφωσις πρὸς τὸν ὑποκριτὴν πεποιημένη"[30].
A aproximação entre estilo desarticulado e performance pode parecer uma contradição na análise da textualidade de Heráclito. Como vimos, a proposta de Heráclito se desloca de situações tipicamente performativas para o trabalho em menor escala, com seus artefatos verbais. Contudo, o que Demétrio discute é uma das possibilidades do estilo paratático. Haveria outras situações de se produzir a parataxe que não as provindas de situações performativas. Ou, de outro modo, poderia haver uma intersecção de procedimentos ligados a situações performativas em situações fora de apresentações públicas.
Em todo caso, a singularidade de Heráclito está em sua escrita, que agencia a desarticulação dos elementos sem, entretanto, vincular-se a um evento para uma audiência. Mesmo assim, embora não havendo uma papel a desempenhar ou estados extremos de sensibilidade a materializar, há na marcação emocional e na fisicidade das ações referências comuns com aquilo que Heráclito realiza nos fragmentos.
As tensões entre extremos, identificável em pares opostos e complementares de termos e as relações entre os blocos de palavras, traduzem em outro modo de expressão as intensidades afetivas. Dessa maneira, temos a correspondência entre a variação do fluxo de energia nas ações dos atores e no arranjo dos fragmentos. Os violentos entrechoques em referentes opostos e paralelimos/quebras de simetria não são objeto inteiramente noéticos: Heráclito se apropria de textos e situações conhecidos de seus contemporâneos, de modo a integrar a decifração do arranjo verbal no contato com as intensidades registradas nos fragmentos.  
Ainda, do mesmo modo que a movimentação nos extremos afetivos se vincula aos atos físicos em cena, temos que a réplica textual desses atos pode ser percebida nas diversas trajetórias e vínculos entre os elementos e grupos e nas trilhas fonoestilísticas.
Assim, a dinâmica da cena, da situação performativa e do arranjo complexo dos fragmentos se aproximam ao produzirem acontecimentos multiplanares, com simultâneos níveis de referência e organização.  Nesse caso, a opção pelo estilo desarticulado pode ser melhor comprendida como a proposição de homologia entre textualidade e eventos que, em virtude da densidade de seus nexos e relações, demandam formas também densas de sua tradução verbalizada.
Logo, os próprios fragmentos e o livro de Heráclito são por si mesmo mais acontecimentos da mesma natureza daquilo que registram e investigam.


[1]
[2] Retórica 1497b.
[3] Para ratificar a posição final do eco em ου, pode-se transferir o delta (δ) para a posição sílaba seguinte, assim resultando o padrão 1: τοῦ , λόγου, τοῦ- δ' ἐόντος . Note-se que desse modo o inicial padrão sonoro 1 foca-se no som no fim das palavras e o inicial padrão sonro 2 prende-se ao início das palavras.
[4] MARCOVICH 1967: 9.
[5] Ilíada 1,290. V. HENRICHS 2010. Outra ocorrência da expressão na Ilíada: I,494, com a variação αἰέν.

[6] Foquei com o termo na orientação do movimento e não em seus constituintes, como em suas aplicações na medicina (reumatismo palindrômico), biologia molecular (sequenciamento genético) e matemática (algorítimos de inferência a partir de modelo oculto de Markov).
[7] Ilíada 1,51.
[8] Ilíada 1, 106-107.
[9] Ou a popular expressão 'profeta do caos'. Paulo Herique Amorim cunhou o neologismo Urubóloga para se referir a uma jornalista que reitera previsões negativas na economia.
[10] Ilíada 1, 176,177.
[11] Ilíada 1, 539-542.
[12] Ilíada 1, 561.
[13] NEVES 1999:270.
[14] Sobre   'Constrained writing'  ou 'Experiential Literature', v. (GEEST & GORIS 2010, BRAY;GIBBONS&McDALE 2012) . Há uma longa tradição dessa restrições prévias, como usar somente um tipo de letra, sílabas ou palavras em uma dado lugar no texto. Acrósticos, anagramas, lipogramas, palíndromos são alguns modos mais conhecidos dessa tradição.  No século XX o grupo Oulipo (Ouvrir de Littérature potententielle ) reciclou tais formas em novas demandas para autores contemporâneo. V. BLOSSIER-JACQUEMONT 2009 sobre este tipo de produção literária no período helenístico, no período imperial e Antiguidade tardia.  
[15] Fr. 52.
[16] Traduzi παιδὸς ἡ βασιληίη a partir do título da obra de Monteiro Lobato  Reinações de Narizinho (1931).
[17] Para uma discussão das acepções do termo, como 'fluxo vital', 'duração da vida', 'vida', 'idade', 'duração', 'eternidade', 'tempo', v. CASSIN 2004:24-31.
[18] Ainda, o fragmento 70, as opniões/crenças dos homens como brinquedos de criança, παίδων ἀθύρματα .

[19] HUSSEY 1999:107 "The child is a boy playing a board game for two players; no opponent is mentioned, so the assumption must be that the boy is playing both sides. This can still be a free and genuine conflict, in which skill is exercised and sharpened. It is lawlike in procedure: the rules (which are freely accepted by the players, not imposed from outside) define the game and are impartial as between the sides. It is lawlike in outcome since, if each side plays equally well, it will win equally often in the long run - though the outcome of any one game will not be predictable. In the short-term there are (as gamblers know) alternating runs of luck on one side and the other. True to his habits of thought, Heraclitus seeks to show, by a model drawn from every- day experience, that strife and justice can coexist, interdependently, without becoming denatured. "
[20] MARCOVICH 1967: 494. V. Heródoto I.94, que situa nos Lídios a origem de jogos( de azar, de bola) como alternativa para passar o tempo em virtude de grande fome que se abateu entre eles. Mas, como bem apontou Ateneu 1.19A, na idade heróica (Homero) já havia referências ao jogos, como os de tabuleiro em Odisséia 1,106-107.
[21] BAILY, LSJ.
[22] AUSTIN 1940.
[23]  KOUKE 1999: 257 " it is unclear whether this game involved dice as well as pieces moved on a board."
[24] Uma descrição linguística é oferecida por MOST 2011:105: "Heraclitus’ aphorism B 52 DK consists of only six words, not a single one more (plus two semi-words, a copular verb meaning ‘is’ and a de nite ar- ticle indicating ‘the’). Of the six words, four are nouns, two participles; three of them signify or are derived from the word for ‘child’ or ‘boy’; one begins with a vowel, four with the voiceless plosive consonant ‘π’ and one with the closely related voiced plosive ‘β’; the diphthong ‘αι’ is repeated thrice in the first six syllables and then again later, the long vowels ‘ω’ and ‘η’ recur. In its choice and arrangement of words and sounds, its repetitions and variations, the sentence seems not only to be asserting a proposition about reality but also to be performing a kind of verbal game, moving around sounds and words, playfully and yet at the same time purposefully, like checkers on a board. But what is it asserting, and what is its game? "

[25] V. MOTA 2005.
[26] Sobre o Estilo, 191-193.
[27] Longa tradição na recepção crítica de Heráclito, como se vê em Platão, Aristóteles e Lucrécio. V. MACLAREN 2003.
[28] Ou seja, conjunções e preposições são mais omitidas que verbos, substantivos e adjetivos. V. BERNSTEIN 1999:5-50. BARNES GRANGER.
[29] Sobre o estilo,194.
[30] Sobre o estilo, 195.

Leitura dos fragmentos

O livro de Heráclito O debate sem fim sobre o livro de Heráclito na verdade é fruto do modo como concebemos deveria ser um livr...